segunda-feira, 29 de junho de 2015

antes, durante e depois

A vida acontece em três dimensões: o antes, o durante e o depois. Contudo, mais que nunca, valoriza-se o depois, em detrimento das outras instâncias. O resultado final é exaltado e é em função dele que se constroem ídolos e proscritos.
Mas a preparação para todos os caminhos e o próprio caminhar são tão ou mais relevantes que a chegada. Tudo está integrado e assim deverá estar, caso se almeje mais que eventuais e ilusórias vitórias. Os marombados e marombadas são produtos de produtos. Ostentam a exuberância de fórmulas químicas, que garantem satisfação fugaz e consequências preocupantemente duradouras. Justamente numa sociedade em que nada é feito para durar, em que tudo se torna obsoleto, para ser trocado por versões mais modernas (inclusive pessoas?). Aliás, a era da confluência estranha entre tudo e nada.
A felicidade, a beleza física, o poder têm que ser perpétuos. Qualquer dia, inventarão refis de alegria, capazes de renovar sorrisos de plástico e expressões faciais de difícil interpretação. Drogas garantem a ereção. Mas ela é o produto final também?
Se for esse o raciocínio, o orgasmo será tudo que se busca (e é?). Orgasmos são o depois, depois dos olhares, das carícias, da sedução sem pressa. Novamente, são minimizados o antes e o durante, em benefício de um depois cujos benefícios são bastante discutíveis.
A ideologia do resultado resulta na deterioração da própria ideologia. Pois ao apostar todas as fichas no desfecho, estamos fechando os olhos para tudo aquilo que os faz brilhar, de verdade.

curvas e corvos

A água turva do poço esconde de mim tudo que não posso.
A curva esconde da reta o que está logo atrás da seta.
O corvo aguarda o desfecho do trabalho do guarda.
A água que escorre dos olhos do preso também não tem liberdade. Ela não pode fugir do poço, da inutilidade das setas e do cansaço do guarda.
Mal ou bem, resta o corvo, que tem asas, mas não conhece o bem nem a maldade.

domingo, 28 de junho de 2015

maneiras maneiras

Há muitas maneiras de viver o domingo. 
Alguns preferem à flor da pele. 
Outros, dormindo.
Há muitas maneiras de viver. 

Algumas mais maneiras. 
Outras, vai saber...

o tesouro

Qual o maior tesouro:
tez ou ouro?

sábado, 27 de junho de 2015

as portas

São duas portas, feitas com afinco.
Que levam e trazem.
Duas portas sem trinco.
Que nunca se fecham e nem se abrem.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

ferrão e mel

Seja você, despudoradamente
Seja integral, com casca e sabor
Seja o corpo da sua semente
Seja lá o que for
Seja Sol e Lua no mesmo céu
Seja aquarela, que não escolhe cor
Seja abelha, com ferrão e mel
Seja tudo que é, com amor

domingo, 21 de junho de 2015

harmonia

A única forma de ser verdadeiramente humano é perceber e aceitar as inúmeras formas de ser humano. Assim, o masculino e o feminino podem (e são) exercidos pluralmente. Pouco a pouco e cada vez mais despontam comportamentos, que só enriquecem o repertório de originalidades. Tendências, apetites, aptidões, estilos quase tão diversos quanto os indivíduos. Não me choco com dois homens ou duas mulheres expressando carinho e desejo entre si. O que me aturde é a idiotice da intolerância, do repúdio àquilo que, possivelmente, é mantido acorrentado nos porões do intolerante, tão raivoso quanto inseguro. Espero que muito em breve cristãos, muçulmanos, espíritas, judeus, palestinos e xiitas acolham-se, sem que seja preciso encolher diante das próprias escolhas. O amor e o desejo não são hétero, homo, bi ou trans. Plúrimos é o que são e somos, tão mais felizes quanto mais livres formos. Viva o afeto inteligente, que torna tão normal o diferente!

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Até quando?

Com a globalização das verdades, pesos e parâmetros passaram a ser definidos ditatorialmente pela voz mansa e sedutora da propaganda. Assim, a supremacia (individual e coletiva) tornou-se a grande vedete das prateleiras, objeto de desejo de 11 entre 10 entrevistados. Busca-se performance, desempenho, resultado, vitórias, conquistas. Por isso, o repouso está em baixa. Quem ousará declarar-se exausto, no limite, se não haverá quem o imite? Todos ou quase todos caçam recordes, que devem ser superados sistemática e desumanamente. Você é o que suas medalhas e troféus, metafóricos ou não, dizem que é. E se não os tiver, deixa de ser. É preciso ter para ser. Desde uma barriga negativa
até investimentos financeiros mega positivos. Os sinais exteriores de prosperidade e riqueza certificam o pedigree, a superioridade, ensejam exclamações de bocas e olhos escancarados de fascínio. Concomitantemente, também são detonadores de outros sentimentos, de índoles diversas. Inveja, daqueles que cultivam os mesmos valores, mas apenas interiormente. Indignação, dos que gostariam de ser mais valorizados pelo que são e fazem. Que fase!
A lógica do pragmatismo impiedoso e tacanho resulta na defenestração de muitos profissionais. Pouco importa a seriedade do trabalho deles. Investimento na própria formação, planejamento estratégico, fortalecimento do grupo...nada disso segura a fome insaciável do imediatismo. Amanhã é tarde demais, depois de amanhã é nunca mais. A máquina de moer nomes e projetos é anônima e reduz tudo a meros dejetos. X é substituído por Y, este por Z e a ciranda não termina jamais.
Vivemos sob o jugo da ideia da perfeição, da infalibilidade, da hegemonia.
Até quando?

sábado, 6 de junho de 2015

Barcéulona

Aturdido por tantas notícias ruins, assolado por escândalos e por uma escandalosamente prolongada entressafra de talentos, eis que, diante de meus olhos desabituados de admiração, jogam Barcelona e Juventus a finalíssima da Copa dos Campeões da Europa. Fora apenas uma partida de futebol e seria o bastante para aqui declarar meu entusiasmo. Explico: ontem tive o desplante de passar hora e meia sendo torpedeado por cenas paupérrimas do jogo Botafogo e Mogi Mirim. Diga-se de passagem, esse confronto não fica muitíssimo distante de tantos outros que castigam os torcedores de futebol mais abnegados.
Barcelona e Juventus redimiram a mim e a todos que, quase esquecidos dos fundamentos mais elementares do esporte bretão, estão a um passo de habituar-se com a tragédia dos passes mais equivocados que os políticos pátrios. E na classe política incluo, como deveria fazer, muitos dirigentes de entidades desportivas. Afinal de contas, eles também têm estranha resistência às prestações de contas e ainda mais insólita paixão pela obesidade de suas próprias contas (bancárias).
O Barcelona, da Espanha, representa a técnica apurada, o virtuosismo, a primazia da ofensividade, o fascínio pelos beijos da bola nas redes adversárias. A Juventus, velha senhora italiana, a despeito de bons jogadores, adota estratégia mais defensiva, o pragmatismo de apostar no erro fatal do oponente, a objetividade cartesiana, sem compromisso assumido com o encantamento.
Por tudo isso, escolhi a equipe catalã como minha favorita, por indiscutível identificação com o que ela significa no cenário futebolístico atual e no imaginário do embate entre poesia e concretude.
Vieram-me à mente as impagáveis conversas de bar, pessoas a quem se quer bem, a descontração, a informalidade, os guardanapos tatuados de rabiscos inspirados. Paralelamente, a visão de incontável aglomeração de estrelas no céu, convidando às mais alucinadas abstrações. Para completar, a magia guardada pela lona do circo, a leveza plástica dos trapezistas, a alegria dos palhaços, as surpresas das cartolas dos mágicos.
O lúdico, o etéreo, o enigmático contrariando o lúcido, o sólido, o invariável.
Assim é e foi o Barcelona hoje: embriagante como as resenhas dentro de um BAR, estelar como o CÉU que nos tira do chão, envolvente a ponto de levar à LONA o adversário. Barcéulona, desculpe-me pelo neologismo e receba meus aplausos de pé, pela capacidade de fazer com os pés as fundamentais carícias no corpo e na alma da arte, mãe de todas as coisas mais belas.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

uma chance

Quero o grito mais profundo, alguma coisa tão diferente, que pareça vir de outro mundo. Quero a timidez desvirginada, vestida de desejo e mais nada. Quero torrentes de calores e frios, enfeitando minha pele de arrepios. Quero abdicar de todo aprendizado, deixando o tédio completamente entediado. Quero nova terra e novo céu, provar a chuva com gosto de mel. Quero vontades escancaradas menos atentas às saídas que às entradas. Quero redimir desistências e arquivar para sempre as penitências. Quero comemorar a volta da simplicidade, quero paz e alegria na minha cidade. Aos humildes exaltação, aos exaltados compreensão. Quero a noite com sabores e o dia sem dissabores. Quero crianças na escola e não na prisão, reprimir a desigualdade e distribuir compaixão. Quero abrir as gaiolas medievais e lutar para que não se fechem nunca mais. Quero apontar para o esquecido uma chance e torcer para que ele a alcance.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Ateus

Acreditávamos que a velhice era o portal da sabedoria. Após mais ou menos seis décadas, construímos o pressuposto da maturidade emocional, algo que induzia à ideia do equilíbrio,
serenidade, mansuetude.
Contudo, fatos recentes conspiram contra tal compreensão. Longevidade começa a desenhar-se como mero acúmulo de primaveras. Ao mesmo tempo, é chocante a percepção de que septuagenários, octogenários sejam também colecionadores
de outros artigos, alguns deles inclusos no Código Penal.
Céus! Poderiam ser nosso avôs e possivelmente têm netos.
O que estarão dizendo a seus descendentes? Quais as desculpas para culpas tão graves, se é que se desculpam ou mesmo sentem-se culpados. Talvez nutram desde sempre a
máxima de que ser rico é o máximo a ser aspirado pelo ser humano. Opulentos céleres, na busca infindável de amealhar vantagens, regalias, privilégios. Capazes de atropelar princípios, pela supremacia dos fins a que se propõem.
Que herança maldita legarão aos seus, hein? Metais, papéis, atas de negociatas. Materialmente aristocráticos, espiritualmente plebeus. Mas é provável que para esses neo senhores feudais todos os demais, que não compartilhem a sua cega adoração ao capital, sejam periféricos ateus.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

corredores do tempo

O tempo corre, a vida escorre e tudo transcorre em aparente naturalidade. Corro da cama para o trabalho e dele para ela.
Corro para pegar o ônibus e ele para me pegar. O sangue corre em minhas veias, inflando as velas que fazem o barco correr.
Cruzo os corredores correndo, corro para abraços nômades, que não conseguem parar, que não podem parar. E não reparo em tantas coisas que merecem reparo. As teclas correm para os meus dedos, assim como as mensagens para meus contatos.
Corro para abrir e fechar contratos, para estampar retratos exaustos de tanto se multiplicar. Corro para amar o meu amor, que pode estar correndo para amar-se e só então poder me amar. Corro para o dia que ninguém sabe se virá, mas meus pés sabem se virar para chegar antes de outros pés. As notícias correm pelo mundo e ele em busca de novidades. Mas elas se cansam de correr, mudam de idade, de cidade. Quanta praticidade nas maratonas que colecionamos. Lecionamos disciplinas indisciplinadas, caçamos apogeus, desprezamos a simplicidade. Escalamos Pirineus e calibramos os pneus todo dia, por causa do desgaste. À noite, a exaustão corre pra gente e alguma coisa nos diz que é cada vez mais urgente aprender a descansar.